'' e a vida era mesmo assim: cair sete vezes & levantar oito. ''

terça-feira, 12 de agosto de 2014

transe (incompleto)

 Não abri os olhos. Preferi manter-me na escuridão naquele instante. De outra maneira, se os abrisse, veria o mesmo: o nada. Senti mudanças térmicas na minha cara, tão rápidas. Além disso, senti um peso nos meus pulsos e a dor espalhava-se agora pelos restantes músculos de cada um dos meus braços. A rigidez tomou conta de cada um deles, fazendo uma dor suportável por alguns momentos. O pior não era a dor física. Era o peso que sentia em cima de mim, o mundo a desfazer-se em pedaços simples como grãos de açúcar ou em fragmentos maiores como blocos de gelo. Perdia o balanço por momentos, mas continuava seguro pelo que me prendia. Cordas? Correntes? Não sabia, mas seguravam-me ao solo argiloso por baixo de mim. 
 Eu pendia, ainda com os olhos fechados, livremente. Seguro, mas parecia tão difícil contrariar a força da corrente, tão difícil que doía o peito. Apoderava-se de mim, por minha vontade ou não, mas controlava-me, fazia querer desistir de lutar contra as forças que me prendiam. Lentamente, sentia-me a perder o equilíbrio gerado e tinha uma enorme vontade de me soltar. Soltar e correr. Não sabia se ia a tempo, se era demasiado velho para ser tão impulsivo. No entanto, não valia a pena querer fugir, uma vez que não me conseguia libertar. E estava agora numa dilema entre a razão e a emoção, se ir no primeiro comboio ou ficar até o último, até à estação ficar vazia, sem gente. Deserta como o ambiente onde me encontrava. Já tinha aberto os olhos entretanto. Eram cordas que me amarravam. Velhas, mas fortes.
 O vento era forte e fazia colar a minha camisola ao peito. Era quente, insípido, seco e fazia os meus cabelos vibrarem com a sua passagem. Eu não me mexia, sentia os pés dormentes. Não sei quanto tempo estava ali de pé, em frente ao vazio, ao nada. Sentia-me cansado e farto de ver a paisagem coloquial que se apresentava. O vazio, o morto, a vida sugada pelo vento. E eu era o próximo a perdê-la. Fiz força, mas as cordas não rasgavam, muito menos se soltavam. Fraquejei as pernas, deixando o meu peso entregue aos nós das cordas e a dor voltava. Soltei um gemido de dor e vi o sangue escuro a escorrer até ao solo. Deslizava na argila, arrastando algumas partículas em suspensão com ele. Quis gritar, mas gritaria para o vazio. Fiz um esforço para recordar como teria chegado àquela situação, mas doía-me a cabeça, não sei se por cansaço, pela perda de sangue ou por outro motivo aparente.
 Foquei o horizonte e entrei em transe. Senti o vazio entrar dentro de mim como uma possessão. Perdi a lucidez. Perdi tudo. Apenas sobrava eu, no meu espaço, e uma hiperventilação constante e forte que me irritava profundamente. Pesava-me a cabeça, pesavam-me os ombros. O peso era pior que a dor. A impotência era mais irritante que a hiperventilação. Perder o controlo era algo que nunca me havia acontecido, deixar escapar os fios que me seguravam. E agora estava seguro por cordas que nem eu imaginava a origem. Duvidei de mim. Senti-me fraco e com razão. Era fraco face àquele peso bruto que me tomava e por muito mais que me esforçasse, era inútil. Doía mais, fraquejava mais. Arrastei os pés no mármore gelado e negro que estava debaixo do espaço criado na minha mente. O transe levara-me para um local diferente, limpo, fresco, mas vazio. Percebi onde estava no momento em que te vi apenas coberta com um dos lençóis da nossa cama. Os teus pés estavam descalços, certamente sentirias o frio que eu também sentia. E foi como se tudo que tínhamos voltasse num sopro que penetrava as minhas estranhas. Forte, suficientemente forte para me assombrar naquele momento. Estava novamente desequilibrado e voltei à realidade. O sangue dos meus pulsos manchava a corda.

 Percebi onde estava e fiquei mais aterrorizado. E estavas lá, tal como calculei. Tão perto e tão distante, tão perto e tão absurdamente indisponível. Olhei. Cansado, ensanguentado, miserável. Estava completamente entregue nas tuas mãos naquele momento. Mas só naquele momento? Podias simplesmente cortar as cordas, deixar-me viajar pelo infinito do horizonte. No entanto, fazias questão de me por face ao abismo, impotente, inapto. Por vezes, davas um passo comandado pelo teu instinto. Recuavas, orgulhosa e saciada do teu racionalismo. Eu continuava a pender entre estes teus dois estados: salvares-me ou não.

(continuará)

terça-feira, 24 de junho de 2014

incompleto

 As manhãs eram piores que as tardes. Sentia a tua falta, sobretudo, misturada com um nojo de mim mesmo, um vazio que me provocava. Sentia-me um nada, um espetro projetado numa tela branca de cinema. Só, completamente só. E a luz que me formava esvanecia-se sobre o ar que distanciava o foco e a tela.
As manhãs tremiam incansavelmente, enchiam-se de água dos meus olhos. Sentia o seu sabor e a sua alcalinidade na minha boca e a paisagem mantinha-se igual, semelhantemente igual. Enchia-me também de oximoros entre a vontade de te ter e o desejo de não te querer. Dividia-me, fragmentava-me entre margens excêntricas do meu lado impulsivo e as linhas retas da minha razão. Desejava não te desejar tanto.
A maior parte das vezes ganhava a memória, a recordação do que foi apetecível. Pintava-te, moldava-te segundo uma atração fenomenal, uma dádiva divina. Alimentava-se de mim como uma bactéria mortal, consumia-me como fogo fátuo.
  Passava assim a manhã. Louco, alucinado, divido, fragmentado. Perdido.
  À tarde melhorava significativamente. A atração que te formava era substituída por pensamentos conscientes, isto quando não me tomava a ansiedade de te ver novamente, de, pelo menos, ouvir a tua voz. Residia agora em mim a patética esperança, a racionalidade despromovida de justificações. Perdia-me em conjeturas falsas, palavras sem noção do seu significado e deixava-me solto, incrivelmente livre de qualquer lei física que nos quisesse juntos. Não te querer, provavelmente, doía mais do que não te ter.
  Começava então uma súbita atrofia no meu corpo, moviam-me os músculos, especialmente o cardíaco. Entrava em mim, como por osmose, aquela vontade ensurdecedora que eu já conhecia. Tomava conta de mim, por completo, de cada célula, de cada biomolécula em mim integrada. Sentia desagregares de mim como por erosão do tempo ou da distância que nos separava. Mas voltavas a unir-te, por pontes de hidrogénio universais, cada vez que voltávamos a estar juntos.
 Redundância. E já era de noite. A noite sim matava-me por completo, tal como um veneno mortífero, uma doença silenciosa. Não sei porquê, mas perdia a razão e ligava completamente o interruptor do meu instinto animal. Nem pensava, só te queria, como na maior parte do dia. Mas ali mostrava. Ali sentia-me obrigado como se qualquer parte do meu corpo fosse comandada pela natura.
 Deixava-me levar e ser preenchido pelos grãos de areia da praia deserta. O luar focava o movimento lento e descendente do meu corpo. Profundo, ligeiramente profundo. Respirava ao ritmo das ondas. Evadia-me no espaço, mas continuava a ser noite. Continuava a haver luar, continuava a desejar-te com toda a minha alma, se é que ela existe. Sempre fui alguém material, concreto, racional. Contigo não. Contigo tudo era simples, fazias-me acredita na metafísica, no transcendente ao objetivo.
 Fizeste-me acreditar no espaço divergente, na realidade alternativa. No infinito.
 Sabia a sal na minha boca, mas não era do cloreto de sódio do mar. Sentia a cara molhada, mas não era do óxido de hidrogénio do oceano. Juntavam-se a ele as gotas que lacrimejava e eu continuava inerte, impuro. Lembro-me vagamente de um dor intensa nas pernas e nos ombros que se suavizava-me com a explosão de sentimentos que guardava. Olhei para o céu: vazio como eu, confuso como eu.

  Não vieste e não me surpreendo. Afinal não somos assim tão diferentes. Mas já passou. Ou vai passar.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

o amor descrito sob pressão

 Em primeiro lugar, peço desculpa pela minha ausência neste blog, mas, por vezes, os rumos da vida tornam impossível omnipresença. Em seguida, deixo um texto escrito sob pressão, durante o meu teste de Psicologia. Espero que gostem, um bem haja a todos!

O que é o amor e o que é que significa? Uma viagem de descoberta pelo abstrato da mente, um sonho que passa do filtro do irreal, uma gota de água expandido pelo mar da imaginação. Uma força? Uma tempestade? Ou uma brisa suave, um vapor esquecido do vento? Uma energia frenética a correr na artéria aorta, um devaneio mental que se transforma no bater pulsante e sincronizado do coração. Pum… Pum… Pum…
 O que é o amor? O que é que significa? Um jardim de rosas preparado pelos deuses do Olimpo ou pelos anjos celestiais. Uma cidade edificada por duas pessoas, com enormes edifícios, arranha-céus, com muralhas de mármore, quartzo e outras pedras preciosas. Inquebrável, inabalável. Um sorriso que já saiu e que permanece.
 Maior que isso. Um globo, um universo em expansão, em chamas, o cosmos a arder nos meus olhos, diretamente para o coração.
 É isto o amor? Ou é algo indecifrável? Um hieróglifo egípcio, uma equação impossível. Uma incógnita por descobrir parada na reta de números reais. A força do infinito concentrada no toque, no abraço de duas pessoas. Uma comunhão de sensações, sentimentos. Sentidos em êxtase que não se preocupam com o porquê nem com mais requisitos.
 Uma fração do relógio, o tempo indefinido. O vácuo, o inimaginável. A indefinição, a indeterminação mais conhecida por todos nós.
 Se é o vácuo, como sabemos o que sentimentos? Se é o desconhecido, como saber dizer ‘’Amo-te’’?
 Amor. Noites calmas, estreladas e de lua cheia. Madrugadas frias, frenéticas. Tarde quente, azul do céu. Amor. Um mergulho no abismo, o decifrar o indecifrável. Uma definição de tesouro, trancada a sete chaves nos confins da terra. Uma definição aproximada por metáforas, tal como todo este texto. Palavras. Simples. Conceitos pouco concretos, termos ainda mais abstratos. Andar à deriva. Saber o caminho a seguir ou navegar por entre o nevoeiro.
 O que é o amor e o que é que significa? Uma estrela de neutrões, um colapso astronómico. Dois mundos que colidiram e partilham as suas atmosferas pacificamente. Uma união entre duas estrelas, dois átomos.

 É isto o amor?

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Volta

 Escrevo-te porque não sei. Ou porque sei que não vais ler. Ou porque qualquer fragmento deste papel possa aparecer no teu rumo de vida. Não sei porque escrevo, não preciso de saber. Sinto-me doente ou então com uma bruta ansiedade sobre os meus ombros. O coração faz curtas diástoles, com pouco tempo de repouso. Está frio, não está?
 As luzes da minha rua ofuscam-me a visão de uma imperfeita noite e eu mantenho-me ansioso e com a necessidade de expelir uma Revolução Industrial que dentro de mim se despoleta.
 As lembranças são feitas através de flashbacks repetidos, demorados e contínuos no tempo, como uma função afim.
 Sinto-me num infinito de abcissas soltas nos números reais. Qual é o fim? O infinito? E eu o que sou? O infinito?
 Prendo-me novamente em questões matemáticas, a maior parte delas sem o mínimo raciocínio lógico. Nem o amor é lógico. Nem eu sou lógico. A mente, outrora dominada pelo meu hemisfério esquerdo, vê-se agora numa fase impulsiva e extravagante da sua existência. Não penso. Custa pensar. Ou se pensar volto a perceber na realidade ilusória na qual me encontro, a mesma realidade onde tu és um elemento presente.
 Lembro-me de ti como se ainda hoje de manhã me tivesses acordado com um beijo agreste. Lembro-me de ti como se ainda fosses parte da tatuagem que outrora fiz. Passo a mão por ela e lembro-me do contacto estonteante entre os nossos corpos, um contacto que se calhar nunca existiu. Ainda me debato sobre a diferença entre a realidade que vivo e a realidade que sonho. Volto-me a lembrar da tua silhueta, a tua leve silhueta. Lembro-me do que sempre quis. Amar-te.
E ser o teu corpo e o meu um só. Sentir-te. Sentir o calor do teu corpo nas minhas cruas mãos, mortas agora pela extrema actividade cerebral. Contornar cada detalhe harmonioso e saborear o teu frenético êxtase revolucionário.
E mostrar-te o que sou e partilhar o meu universo estrelado contigo. Cumprir a lei da reciprocidade e vivermos alados da lei gravitacional. Deixar-nos reger por leis físicas, universais e dogmáticas. Sermos um e conseguirmos desvanecer qualquer erro paradigmático.
E amar-te novamente e saber que me pertencias naquele momento. O momento do espaço, a nova abcissa irreal onde tu existias. Desejo regredir para lá, mas mantenho-me preso pela inércia. Lembro-me das Leis de Newton e até elas me lembram de ti.
 A função cuja variável é o tempo avança, exponencialmente ou racionalmente, não sei, mas avança. E tu não estás. Desliguei os meus sentimentos como um interruptor (pudera ser possível). Tornei-me frio e daí a não sentir a gélida temperatura que faz lá fora. Não conseguia sentir, mas se sentisse, sentia que já te tinha perdido, que eras areia e passavas nas fendas das minhas mãos. Sentir-me-ia perdido, sem salvação como se tudo se prendesse àquele momento: o teu corpo salgado de cloreto sódico e a minha vontade de te fazer minha.
 E o sal invade a minha boca. Os meus músculos deixam de ser rígidos, talvez pela excessiva entrada de sódio ou por me confrontar com a verdadeira realidade. Surgiam novos compostos inorgânicos no meu sistema cardíaco. A ansiedade e o êxtase percorriam a minha corrente sanguínea e a vontade de te voltar a ter emancipava-se por todas as minhas inúmeras células eucariontes.
 Debruço-me novamente no espaço em ordem ao tempo. A função que nunca conhecera. Desejo o teu voltar. Regressa! Era tarde.
 Perdi-te ou ainda estás aí? Não sei, já faz tarde e o muro da minha casa desvanece com a água da chuva. Porque não vens? A hora passava metodicamente e a saudade aumentava exponencialmente. A tua falta fazia sentir-se no meu sólido olhar. Chove lá fora.
 Onde estás? Porque demoras? O sabor do teu sal desaparece dos meus lábios. Sabe a ferro, sabe a nada.
Por isso, volta. Volta! Necessito do teu calor. Ou calor que não senti. Mas volta e faz-me renascer das cinzas, deixando ferver esta ânsia. Volta e contraria toda a lei metafísica em que acreditas.
 Já te pedi para voltares. Pela noite. Arrasta os teus pés descalços no mármore frio da noite. Volta porque preciso. Volta e apaga a luz.
 Volta, porque ainda é tempo de descobrir o x da minha equação.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Parte do teu mundo - parte II

Aconselho vivamente a leram a Parte I antes deste texto. Peço desculpa pela demora.

Peter acordou contemplando o corpo de Ahalya. Recordou-se de como era antes de a conhecer. Acreditava que o amor era aceitar totalmente o outro, tal qual ele é, mas até mesmo ele havia mudado após a conhecer. Assim, concluíra recentemente que tudo em que acreditava não era válido. Então, o que era o amor? Peter a isso não sabia responder teoricamente, mas sabia que era o que sentia pela dona daquele corpo de arquétipo da perfeição
Nos dias que se passaram, Ahalya mostrou a Peter as zonas da Índia, as tradições e também alguns dos meus amigos. Peter estava completamente feliz. Joseph já não o incomodava e até nem se importava de trazer Monique para conhecer os místicos locais que o haviam seduzido. Estava completamente apaixonado e dizia-se destinado à indiana. Isto era totalmente recíproco.
As águas paradas do rio Yumana obrigavam os calcários das construções a ceder às cores quentes e sonoramente acompanhavam o fluir dos beijos de Ahalya e Peter. Nesses momentos, tudo se tornava estático e o dinamismo da cidade aquietava. Já não se ouvia o trânsito, as canções tradicionais, nem mesmo brilhava o cheiro a incenso no ar. Era criado um apogeu de magnificência fulcral que Peter nunca havia sentido.
- Tenho de te levar a um sítio.
Ahalya controlava aquele corpo rendido às tentações orientais. A primeira sensação que sentiu foi o som deambulante do sitar, coordenado com as batidas frias dos pés descalços e do choque as poeiras argilosas com o ar. Depois aquele cheiro característico a terra molhada e a goma de árvore. Um grupo de indianos, provavelmente amigos de Ahalya, cantava e dançava por entre aquelas partículas olfativas. E aquele momento marcou intensamente Peter. Sentiu definitivamente que aquele era o seu lugar, que não havia nada na vida que quisesse mais do que aquilo. Ali, sentia-se completo. Cada parte do seu corpo decidira habituar-se à música, dançando. Em breves instantes, via-se no meio de todos, a reproduzir cada passo que lhe ensinavam. Deste modo, Peter foi integrado no grupo de amigos de Ahalya que a bom som sorria para ele.
O tempo encurtava e, na teoria, aquele não era o local de Peter. Estava na hora de regressar a casa. Decidiu, por fim, contar a Alicia acerca da sua relação com Ahalya e em como se havia identificado com aquele país.
Alicia não resistiu a dar uma pujante gargalhada, achando aquilo uma brincadeira ou até um sarcasmo do filho. Atendendo à incompreensão da mãe, Peter desceu as longas escadas do hotel e parou à porta do quarto número 89. Com receio, bateu três vezes. Joseph veio à porta, ainda enrolado numa toalha de banho. Atrás podia-se ver a cama desarrumada e ainda uns sapatos que por certo pertenciam a Alicia.
Joseph gaguejou ao vê-lo, mas logo foi tranquilizado. Peter não estava ali para o confrontar, mas sim para lhe pedir ajuda. Iniciou por contar-lhe o episódio do jantar onde tinha contemplado a formosura excecional de Ahalya, no mesmo jantar onde chamou porco a Joseph. Ele riu-se com a ironia da situação, passando a mão no cabelo de Peter. Peter progrediu na história, enfatizando o seu amor por Ahalya, fosse isso através das delicadas palavras que escolhia para assumir o seu amor por ela ou para descrever a sua beleza excêntrica. Por fim, desculpou-se a Joseph pelas suas atitudes, admitindo que o considerava um homem justo que merecia o seu respeito.
Joseph voltou a sorrir.
- Ainda me achas um porco?
- Não, de todo.
- Eu falo com a tua mãe, não te preocupes.
Pela manhã, Alicia acordara o seu filho com um longo beijo na testa, anunciando que decidira ficar mais uma semana em Nova Deli se isto significasse que Joseph podia passar a viver com eles. Peter concordou, adicionando que ele era um ‘’porreiro’’.
Saiu de casa, apressado, ainda com os cordões das suas Vans por apertar. As ruas movimentadas da capital indiana enchiam-se de pessoas àquela hora calorenta da manhã. Ouviu alguém cantarolar o Vande Mataram, o hino nacional, enquanto subia a rua que dava ao jardim da ponte de Athpula. Era aí que a encontraria. Quando a viu, beijou-a ardentemente, balbuciando que tinham mais uma semana.
Ahalya olhou dentro dos olhos de Peter. E com o seu sinal característico pediu que a seguisse. Ahalya ganhava uma velocidade extraordinária como se tivesse uma ótima aerodinâmica. Chegaram a uma casa onde parou, encolheu os ombros e sorriu-lhe com o sorriso mais puro do mundo. Peter não resistiu e tentou beijá-la, mas foi afastado por ela. Subitamente, a sua cara fez uma expressão provocadora enquanto as suas mãos abriram a porta. Lentamente, sem que saísse algum som da sua boca, gesticulou com os lábios ‘’Continua a seguir-me’’.
Peter continuou a obedecer, irrompendo por aquela casa de tom hostil e severo. Ahalya parou e deu as mãos a Peter que sentiu imediatamente as suas energias a fluir pelo seu corpo. Ahalya aproximou-se, pé ante pé, arrastando-se e ao chegar ao corpo de Peter percorreu-o com o seu tato. Interrompeu o movimento das suas mãos no cabelo de Peter, agarrando-o e imediatamente saltou para o seu colo, beijando-o ofegantemente. Ahalya começou a suspirar perto do seu ouvido e ambos deixaram-se cair na cama. Ela arrancava-lhe a camisola, enquanto ele surpreso passava as suas mãos pelas costas chegando ao coxis. Pensou que não precisava de nenhum harém para sentir o que estava a sentir.
De rompante, ouviram-se berros. Peter saíram imediatamente de cima de Ahalya, vestira-se e encontrara uma senhora, que admitiu ser a mãe de Ahalya, de joelhos no corredor pedia misericórdia para a filha. As duas começaram a discutir em Hindi. As lágrimas escorriam o resto de Ahalya e Peter estático, sem reação, não compreendia em que podia ser útil. Ahalya pede a Peter que fuga rapidamente.
O sol se pusera duas vezes e não havia sinal de Ahalya. O rio Yumuna ganhara uma força incrível nos tempos mais recentes. Os calcários desfaleciam, atempadamente, bem como a argila se espalhava no ar. De súbito, eis que surgiu um rapaz indiano perto de Peter.
-  O meu nome é Kalimohan e sou irmão da Ahalya.- disse num inglês imperfeito, diferente do da sua irmã. – Tenho uma mensagem para ti. Ahalya está presa em casa, mas haverá uma cerimónia amanhã perto de Qutub Minar em que ela tem de participar. O plano é se encontrarem antes da cerimónia.
Peter estava desorientado e precisava agora mais do que nunca da ajuda de Joseph.
- Eu vou-vos ajudar. Pede-lhe para fugir, para vir connosco. Só assim vão conseguir ser felizes. Tu não pertences a este mundo, Peter. Eles têm as regras deles, com as quais até te podes identificar, mas isto não é uma questão de vocação, infelizmente. Tem a ver com sangue e tu não és do sangue deles. Fujam Peter, eu encubro tudo.
No dia seguinte, Peter contou o seu plano a Ahalya. Ela inferiu-lhe que os pais estavam dispostos a mandá-la para Goa onde se casaria com o filho de um Marajá. Portanto, no dia em que iria para Goa, Ahalya trocaria de comboio, enquanto Joseph distrairia o seu pai.
O dia decisivo chegara. O corpo de Peter enchia-se de tremores que se reproduziam quase por mitose. Inspirou fundo, por uma última vez, o ar de Nova Deli e com ele as recordações dos seus momentos lá. Saudou o Sol, como Ahalya havia ensinado, para ter sorte.
A estação enchia-se de gente e de fumo impetuoso no a e os raios solares dificilmente penetravam a cobertura vítrea. Lá estava ela, linda como sempre. Peter entrou no comboio para o aeroporto, como estava combinado, com Alicia e a sua irmã. Numa fração de segundos, Ahalya e o seu pai entrava no que tinha destino a Goa. Joseph apressadamente segui os seus pais e pediu ajuda no mapa. Joseph deu um sinal a Ahalya que desatou a correr pela coxia do comboio. O pai, reparando nisto, dá um murro a Joseph, que cai redondo no chão, e começa a seguir Ahalya. Brutamente agarra a filha, enquanto alguns indianos tentam ajudar Joseph fora do comboio. Ahalya esforça-se para sair, percebendo que o comboio iniciará a sua marcha. O esforço é em vão pois encontra-se totalmente imobilizada.
Tentando ajudar, Peter dirige-se ao comboio de Ahalya cujos olhos estão inundados de lágrimas. Com dificuldade, Ahalya consegue gesticular um ‘’Eu vou amar-te sempre’’ com os lábios. O comboio começa a andar e Peter passasse a sentir inútil.
Sem nada a fazer, Alicia socorre Joseph e o seu filho que está completamente desbastado, transportando-os para o seu comboio. E o movimento começa a dar-se, enquanto Peter deixa para trás Nova Deli, a poeira argilosa, os calcários meteorizados, o cheiro a terra molhada e a incenso, o rio Yumana, o som do sitar, a mulher que amava e o sítio onde realmente pertencia.





sexta-feira, 22 de março de 2013

Parte do teu mundo - Parte I


Peter era capaz de passar horas a compor mentalmente composições musicais completamente melodiosas. Era completamente sensível a sons e tudo que lhe fosse percetível a nível auditivo parecia completá-lo, exatamente como o x na matemática.
Embora fosse um rapaz excecionalmente talentoso, Peter passava agora na sua vida uma fase um bocado conturbada, devido à morte do seu pai, durante um tiroteio com romenos, que tentavam assaltar a sua loja na baixa portuense. O tiro cravou-lhe na aurícula direito e, por isso, dificilmente resistiu, acabando por falecer no Hospital Santo António.
É de referir que Peter anteriormente a esta situação era um rapaz gentil, tímido, mas curioso a nível cultural e tenho para mim que o continuava a ser, visto que a sua máscara de rapaz frio caía em certos momentos.
No entanto, vivia agora assim: evitava longas conversas com a mãe, isolava-se no seu canto e apenas mostrava o que sentia quando fazia soar as teclas do seu velho piano, já empoeirado. Até este hábito estava a ficar perdido no meio de tantos decibéis silenciosos soltos no ar.
Peter estava completamente mudado. Já não era gentil e educado nem só para a sua mãe bem como para as pessoas com quem convivia, incluindo comigo, o mordomo da casa. Como referi, Peter adorava outras culturas, mas passou a tomar atitudes completamente racistas, nomeadamente insultava raparigas de cor negra que vivam perto da casa de praia dos seus avós. Isto preocupava Alice, a sua mãe, mas nem mesmo ela conseguia controlar a fúria e a raiva que ele sentia.
Alice achou por bem, no verão, viajar, mudar de ares e consciencializar Peter de que algo se passava com ele. Para isso, escolheu visitar a Índia. Fazia algum tempo que queria conhecer e juntou o útil ao agradável.
Deste modo, viajaram Alice e os seus dois filhos Peter e a sua irmã Monique para aquele país sul Asiático.
Pauso agora e peço ao leitor que esqueça o cenário aborrecido do habitual: esqueça aquele som irritante do telemóvel, o das buzinas de carro, o das sirenes. Foque-se apenas nos sons cristalinos e na boa energia que eles transmitem. Já está? Agora imagine as cores quentes e exóticas de que está habituado a ver nos filmes sobre a Índia. Sim, é exatamente assim, contudo mais vivo, mais puro.
A poeira do solo alaranjado que se levantava era inundada por um mar sonoro que os envolvia. Peter desenvolvia dentro de si um ódio que era alimentado não só pelo cheiro característico de Nova Deli, como também pelos ‘’Diverte-te rapaz’’ que ouvia por parte da sua mãe. Peter tornara-se de tal modo insensível que nem a música o animava. Além disto tudo, enojava-lhe ver vacas, elefantes e ratos misturados com humanos. Peter queria voltar rapidamente para casa, fumar e beber para esquecer.
Pelo facto de Monique estar bastante cansada, decidiram alojar-se no hotel. Peter tomou um longo banho no chuveiro, onde tentou organizar as ideias. A verdade era que não podia sair dali sem mais nem menos, portanto restava-lhe divertir-se. Divertir-se? Pensou ele. Ele estava num país distante, um mês após a morte do seu pai, tudo na sua vida estava desorganizado: era o namoro da sua mãe com Joseph, era até a própria clave de sol que já não fazia sentido na sua cabeça! A sua mente estava completamente um caos. Ouviu de fundo a sua mãe chamar, iriam jantar fora e ela precisava ainda de comprar algo que Peter não percebeu. Pediu também que tomasse conta de Monique. Peter enxugou os seus cabelos loiros e sem camisola pegou na sua irmã ao colo. Monique cantarolava levemente uma música provavelmente indiana com as principais notas da escala pentatónica e Peter conseguiu ver da janela o cabelo estupidamente untado de gel de Joseph. Como era possível a sua mãe ter trazido Joseph às escondidas? Pior, como era possível aquelas mãos nojentas tocarem no corpo que outrora fora de seu pai? Peter agarrou numa estatueta de Ganesha que estava na mesa-de-cabeceira do quarto. Estrangulou aquela imitação em bronze da deusa, expressando a raiva que sentia, raiva essa que foi cessada pelo cântico quase angelical de sua irmã.
Ouviu Alice a subir as escadas, depois de dois longos beijos. Peter afastou-se da janela, fingindo não saber de nada e preparou-se para o jantar.
O salão era revestido de arcos brancos basálticos que segregavam um forte cheiro a incenso. As paredes alvas como a neve estavam cobertas de grinaldas de jasmim. Peter observou o redor tentando procurar no meio de todos os indianos e turistas Joseph, mas dele não havia sinal. O jantar iniciou-se e logo duas dançarinas indianas serviram Subji e Caril de caranguejo. A noite passava lentamente até que um homem, também ele indiano, de barba contrastante com as paredes do salão, subiu a um placo improvisado e anunciou, em inglês, uma dança de boas-vindas das jovens de Nova Deli para os turistas.
Mal a música iniciou, Peter reconheceu as notas diatónicas descombinadas da ‘’Ja Ho’’. Procurou pela última vez por Joseph no salão e lá estava ele, a um canto, a observar as dançarinas, mas como se fosse Alice que ele desejava no seu Harém. ‘’Porco’’, pensou. No entanto, algo fez com que Peter parasse de pensar em Joseph, em Alice, em Monique, no seu pai e até na música.
Primeiro, salientou-se a silhueta de uma dançarina no meio das outras. Depois, a forma como ela se mexia e por fim, quando observou o seu rosto, ficou sem reação. Peter ficou atónito ao observar aqueles olhos completamente divinais da dançarina e os seus movimentos de ancas petrificaram-no. Sentiu, por alguns longos momentos, arrepios na sua epiderme. Os seus olhos fixos cruzaram-se com os dela e Peter completamente congelou. Sentiu que todas as músicas que ele compusera haviam sido feitas para ela tal e qual como se a força do seu destino, algures escrito numa estrela, o levasse para ela. Era ela que a sua música procurava.



Naquele preciso momento, todos os remorsos, raiva e indignação que Peter sentia dissiparam. Sentiu-se em Varanasi, embora não acreditasse na misticidade desse local. Mas acreditava em algo: o Universo os havia juntado naquele momento.
A dança finalizou e movido por uma força suprema, Peter saiu do salão na tentativa de encontrar aquela dançarina. E lá estava ela, a filha duma deusa indiana, grega ou até romana, debaixo da Lua que iluminava toda a praça do hotel. Nunca havia visto corpo mais vibrante e olhos mais profundos. A rapariga olhou para ele e sorriu delicadamente. Ele retribuiu o sorriso. Ouviu-se umas gargalhadas entre as amigas e começaram todas a correr.
- ESPERA! – gritou Peter em inglês.
A rapariga continuou a correr e Peter segui-a.
- Espera! – pediu Peter, agarrando-lhe o braço.
- Não posso… - respondeu a rapariga. – Tenho de ir.
- Diz apenas o teu nome e onde te posso encontrar.
- Ahalya. Amanhã, quando o sol estiver no ponto mais alto, em frente ao Taj Mahal. – E fugiu.
O sol raiou no quarto isolado de Peter enquanto o nome ‘’Ahalya’’ ressoou nos seus lábios. O ar quente sul asiático fez com que Peter abrisse lentamente os olhos e constatou que estava atrasado para encontrar Ahalya. Apressou-se e correu para apanhar um Tuc-Tuc até Agra. Embora vizinhas, as cidades de Agra e Nova Deli eram totalmente opostas. Nova Deli era muito mais exótica, mas muito mais conturbadora, em oposição a Agra, uma cidade calma e serena. E lá estava Ahalya. A sua bindi era de cor vermelha, tal como as hematites da calçada agrariana e rapidamente fez-se condizer com o tom avermelhado que o seu rosto tomou ao ver Peter. Ele não tinha a noção de como a cumprimentar e simplesmente sentou-se ao pé dela e disse, em inglês, ‘’Olá’’. A jovem respondeu-lhe com um vibrante ‘’Namaste’’ e sorriu-lhe. Seguiu-se uma longa pausa, onde Peter hesitava em falar. Finalmente, tomou coragem e explicou-lhe a sua teoria de que algo supremo a havia posto no seu caminho. A jovem soltou uma gargalhada, agarrando-lhe na mão. Peter não entendeu o sinal, mas involuntariamente entregou-se a ela. Ahalya levou-o, pelo meio de um lago. Peter sentiu debaixo dos seus pés a argila molhada que lhe dava uma plena sensação de liberdade. Liberdade… Era disso que ele precisava!
Ahalya conduziu, por fim, Peter a um jardim perfumado por flores de lótus. Ela sorriu-lhe tal qual a personificação da deusa Lakshmi. Olhou, pausadamente, os olhos de Peter e disse, lentamente:
- Eu senti o mesmo, não consigo descrever. Se me contassem, eu ia pensar que não fazia sentido, que era uma estupidez. Mas agora não… Eu sinto bem aqui. – agarrou as suas mãos e colocou-as no seu coração. – Brahma juntou os nossos caminhos e tudo que Brahma faz é perfeito.
Peter sorriu-lhe, aproximando-se lentamente de Ahalya e deixando-se levar pelo hipnotizando aroma doce de lótus. De seguida, as suas mãos uniram-se, fortalecendo a comunhão entre aqueles dois seres e suscitou, por fim, um prolongado beijo.
- Eu não acreditava em nada disto. Sempre acreditei na razão e na plenitude das notas musicais. Para mim, tudo era muito linear. Achava que estas coisas do destino não existiam. Mas agora tu… Tu surgiste no pior momento da minha vida e estás a transformá-lo no melhor. É estranho dizer já, mas sinto como se te conhecesse desde sempre e que pertenço a ti.
Ahalya sorriu-lhe: ela sentia o mesmo.

                           




sexta-feira, 16 de novembro de 2012

; para sempre?



  O meu nome é Scott e sou mais uma das pessoas que tenta soltar as suas palavras ao sabor do vento, não para esquecer, mas porque, de certo modo, penso que perpétuo o efémero.
Lembro-me de nessa noite estar frio e a cidade estar sombria. O subtil brilho do crepúsculo fazia com que o céu tomasse cores mais frias do que as habituais. Sobre as restantes penumbras solares, era possível observar nuvens preparadas para tornar a noite chuvosa. Concluindo, estava uma noite perfeita para não sair de casa. Mas era inútil desejar isso.
  Damian chegara mais cedo do que o combinado. Estava efetivamente entusiasmado com aquela festa, ao contrário de mim. Não tinha a mínima vontade de ir dançar, meio constrangido, sobre os olhos incriminadores e ansiosos por uma falha. E, na tentativa de ficar em casa, tentei atrasar-me o mais possível. Inútil face à persistência de Damian. Literalmente obrigado, arranjei o cabelo, desci as escadas e lá fui com ele.
   A discoteca estava cheia de luzes perto da escala do ultravioleta. Compostos de néon enchiam também o interior escuro do salão. A amplitude da música deveria estar no máximo dos decibéis e a batida era fortemente marcada, inclusivamente por meios não sólidos. Tudo parecia vibrar ao som daquele ambiente, cheio de fumo, é sorte, mas com o quê de alegria. Alegre eu não estava de todo. Como já referi, não gosto deste tipo de diversão e ficava um pouco acanhado e isolado da pista de dança. Sentei-me perto do bar, admirando Damian na sua tentativa de engatar uma ou duas raparigas e acabar sabe-se lá onde… A noite foi passando e admito não estar a desgostar no geral. Até que surgiu, por entre as luzes não constantes e o fumo ensurdecedor, uma rapariga. O meu corpo desligou-se automaticamente do seu lado racional e perdi totalmente o controlo. Guiado pela emotividade ou, então, pela própria natureza animal, juntei-me a Damian na pista. O meu amigo, claramente, reparou que eu estava suspeito. Deve ter pensado, por momentos, que me tinha drogado e agarrou-me pelos braços. Instantaneamente, dei-lhe sinal para a tal rapariga. Damian sorriu e, espontaneamente, deslizou pela pista de dança e foi falar com ela. Ela limitou-se a sorrir e a dizer que sim. Odiei-o até ele regressar. Num tom muito sério disse ‘’Está disponível e à tua espera’’. Paralisei imediatamente após ter percebido que ela olhava fixamente para mim. Sem outra possibilidade, fui ter com ela.
  - Emily. – gritou- O meu nome é Emily. E o teu?
  - Scott.
  Emily envolveu-me na dança e acabou por me abraçar, na tentativa de fazer-se ouvir melhor. Contudo, percebi que algo não estava bem. Emily estava a suar bastante e a sua respiração marcava compassos demasiado curtos. Resolvi tirá-la daquele local.
  Emily confessou ser claustrofóbica. Explicou também que só tinha ido àquela festa porque o ex-namorado a havia traído, algumas semanas atrás, com uma das suas amigas, e aquilo era apenas uma maneira de conseguir distrair-se. Fomos conversando. Emily partilhou algumas coisas comigo e eu com ela. Era boa ouvinte, muito perspicaz. Conseguia saber fazer uma conversa parecer mais interessante e dominava na perfeição algumas das técnicas de argumentação mais fortes. Damian aparecera horas depois, já a noite ia no fim. Trocamos contactos e ela agradeceu por tudo.
  Os dias foram passando e eu reparei que aquela conversa com ela não saía da minha memória. Eu precisava de falar com ela de novo. Combinamos ir à praia juntos, à noite, enquanto Damian iria com as suas amigas à discoteca.Fazia precisamente uma semana desde que nos havíamos encontrado pela primeira vez. Eu fui o primeiro a chegar.
 O mar estava calmo e a Lua estava totalmente cheia, dando um brilho arrojado à ondulação. O som relaxante das ondas na areia combinava perfeitamente com o caminhar de Emily. Pacífico, majestoso e quase angelical. E lá estava ela. Trazia uma espécie de tiara que fazia dela uma autêntica princesa. Percebi que os seus olhos eram claramente verdes. Afastei-lhe o cabelo castanho claro que se amontoava a frente da sua cara por força do vento. Emily sorriu.Ganhei coragem, ao fim de alguns minutos. Contei-lhe que não havia parado de pensar nela, que ela havia tomado conta da minha mente. Emily mostrou-se surpresa, mas confessou que recentemente tinha pasado muito tempo a pensar em mim. Foi a minha vez de ficar surpreso.  
  Não sou de tomar ações importantes e muito menos o tipo de rapaz que é formalmente corajoso. Mas com Emily tudo era diferente; era como se eu não fosse eu nos momentos sem ela e, com Emily, eu conseguia ser eu. Por momentos, inventei uma teoria qualquer acerca de nós. Eu só era eu sem ela, logo ela completava-me. Um raciocínio filosófico impróprio para o momento. Sem tempo para alongar a minha tese, eu lembro-me de olhar nos seus olhos e apenas deixar-me levar por alguma força superior. Senti a temperatura dos seus lábios nos meus e, simultaneamente, o seu movimento ao ritmo perfeito das ondas do mar. 
  Faço uma elipse para não aborrecer o leitor. Em suma, namoramos por seis meses. Um namoro efetivamente sério. Eu comecei a amá-la cada dia mais do que o anterior e, tenho para mim, que ela também.
  Por altura do meu baile de finalistas, convidei Emily a vir comigo (devo-me pronunciar: Emily estava divinalmente linda). Nessa mesma noite, Damian meteu-se em barulhos com uns rapazes e acabei por ter de levá-lo a casa. Emily sugeriu que eu o levasse a casa e ela iria para a sua. Não me opus pelo facto da situação estar claramente grave para o lado de Damian. Após deixar o meu amigo em casa, recebi um telefonema: Emily tinha tido um acidente.
 Em poucos minutos, cheguei ao hospital. As lágrimas começaram a cair ao olhar para o estado dela. Emily estava em coma. Senti, pela primeira vez, o contrário do que havia sentido ao conhecer Emily. Senti, agora, que tinha perdido tudo, que o mundo era um sítio deplorável e onde eu não queria estar sem Emily.
 Foi passando um mês. Um mês de total tristeza. Todos os dias levava flores novas, digo, margaridas… Como ela gostava de margaridas! Mas parecia que as células das plantas sentiam a falta de esperança da minha parte e murchavam após um dia.
 Mas quando a esperança está no fim, algo de bom acontece. Acontece sempre. Após esse mês, Emily acordou do coma e eu testemunhei esse fenómeno. Quem ama sabe o que senti. Com o tempo, Emily foi recuperando, mas os médicos avisaram que ela ficaria paraplégica.
 Admiro-me como consegui tomar a atitude que tomei. Naquele momento, fugi para bem longe. Questionei porque é que aquilo me estava a acontecer, se eu merecia aquilo, se ela me merecia. Culpei Damian e até o ex-namorado de Emily. Estava completamente descontrolado.No fim da tarde, fui visitar Emily pela última vez, pensei eu. Olhei para ela e senti como se eu fosse a pior pessoa do mundo. Eu amava-a, porque é que eu estava a ser assim? Estava a ser completamente infantil e estúpido. Ela precisava de mim naquele momento e eu era obrigado a estar lá com ela. Era o meu dever doravante.
  O tempo foi passando e Emily foi para casa. Obviamente que os cuidados tiveram de ser redobrados, mas com amor tudo se suporta e tudo é possível. Neste momento, Emily está a dormir e eu a tomar conta dela. Surgiu a possibilidade de ela fazer fisioterapia, ou seja, capaz de voltar a andar. Mas não importa.Eu amo-a que qualquer maneira. Eu podia dizer que ela era o mundo para mim. Que quando estou com ela, é como se as estrelas parassem de brilhar e como se a gravidade deixasse de atuar, sendo a única força presente a que me leva até ela. Podia dizer para todos saberem o quanto eu gosto dela e o quanto eu a acho perfeita. Como ela é bonita quando sorri ou quão bem ela beija! Como ela é engraçada quando tosse ou como ela canta bem. Eu podia encher a minha mente de coisas de que gosto nela, tal como aquele feitio docilmente irritante quando ela quer alguma coisa ou mesmo até as figuras que faz a brincar com o meu irmão mais novo. Eu podia dizer tudo que surge pela minha pele quando ela me beija. Mas não preciso, porque sei que quando ela olha para mim sentimos o mesmo: que pertencemos um ao outro.

sábado, 22 de setembro de 2012

; socorro - crónica em silêncio


(Esta crónica é baseada num relato que me contaram na primeira pessoa. Agradeço a quem ma contou. Os nomes são fictícios para não ferir ninguém. Espero que gostem e espero que reflictam para o combate à violência doméstica)

 O meu nome é Maria e sempre vivi no mesmo lugar. Foi lá que, sozinha, criei os meus três filhos. O meu marido havia morrido na Guerra do Ultramar e desde aí tive de aprender a ser mãe e pai ao mesmo tempo. Admito que não foi fácil aguentar às perguntas ‘’Onde está o pai?’’ ou ‘’O pai vem jantar?’’. Tentava adiar o inevitável durante uns tempos e esse tempo foi passando por mim, pelos meus e pelo lugar onde habito. Os meus filhos casaram todos, formaram famílias e eu acabei por ficar aqui sozinha (obviamente com visitas frequentes dos meus filhos). Comecei então a contar com a companhia e também com a ajuda da vizinhança e, deste modo, fomos criando laços de amizade.
 Até que num dia de verão, já a minha velhice floria na pele e nos ossos, ouvi um choro vindo duma das casas que ficava no corredor por onde tenho de passar. Fiquei alarmada e corri a me prontificar para o que fosse preciso, visto que me haviam feito o mesmo sempre que necessitei. Palmira, uma das vizinhas mais velhas, havia morrido. Era calculável que, mais tarde ou mais cedo, a morte viria, contudo todos entravam em choque na hora em que ela atuava.
 A filha solteira, Augusta, ficou com a guarda dos netos que Palmira cuidava, visto que a sua filha Teresa havia falecido, e veio então morar para a casa da mãe. Foi aí que tudo desmoronou.
 Passei pela casa, como é minha rotina, e ouvi o choro dos miúdos. Tentei espreitar. Como sempre, pensei que poderia ajudar, mas deparei-me com Augusta na porta de casa.
 - Não te metas onde não és chamada, velha gaiteira. – disse, alisando com os seus gordos dedos as duas madeixas loiras.
 Meia atrapalhada com a insolência de Augusta, fugi para casa para preparar o almoço. Estava a preparar um bocado de bacalhau para o meu filho mais novo que iria lá almoçar. O cheiro que se espalhara no ar foi cortado quando ouvi, em alto som, uma chamada da casa de Augusta. Entre insultos, que não vou proferir por não querer usar o vernáculo, ouvi o meu nome. Dizia ela que me bateria e não tinha medo de quem viesse se eu me voltasse a meter na vida dela. Pela primeira vez, temi. Encostei-me perto do fogão e senti o meu coração a bater mais forte. As mãos começaram a dar sinal de pânico e também o meu maxilar acompanhava o ritmo.
 Os ânimos acalmaram quando o meu filho chegou. Finalmente, Augusta estava completamente calada. Almoçamos naturalmente, mas sempre que o silêncio se fazia, ouvia na minha mente as palavras de Augusta. ‘’Se for preciso, eu mato-a! Ninguém me consegue parar!’’. O meu filho de nada desconfiou e nem eu queria que ele soubesse. Sei que este meu filho é completamente explosivo (algo que herdou do pai). Se ele soubesse desta situação, partia para a violência.
 Nos dias seguintes, passava a correr pela porta dela com medo da sua reação. Comprei alguns pães para não ter de sair de casa nos próximos dias. Ao passar pela porta de Augusta, olhei discretamente para lá e vi pela janela Alexandre, um dos miúdos com a cara pisada. Apressei-me a ir para casa na tentativa de que Augusta não me visse. Pensei em avisar a polícia. Ainda hesitei, mas marquei o número no meu telemóvel.
De seguida, ouvi a madeira da minha porta a estalar com dois batimentos singulares. ‘’Será que era a minha neta a fazer-me uma surpresa?’’- pensei - ‘’Bolas… Logo hoje que não lhe fiz um bolo!’’ Abri na ilusão de ser ela, mas não. Augusta apresentou-se à minha frente.
 - O que é que ias fazer?
 - Eu… Eu… Eu… Nada. – gaguejei.
 Augusta apontou para o telemóvel.
 - O que ias fazer com o telefone? Eu sei… Ias ligar à polícia!
 Augusta tomou iniciativa e foi entrando pelo meu hall. Peguei no telemóvel e escondi-o atrás de mim. Augusta tomou as mãos e elevou ao meu pescoço e empurrou-me contra a parede. Encostou a sua testa à minha.
 - Se tu fazes alguma coisa, eu mato-te… Ouviste?
 - Augusta… Filha… Senta-te e explica-me que mal eu te fiz. – implorei a chorar.
 - Cala-te! A culpa da minha mãe morrer é tua! Nem lhe deste atenção… E ainda por cima és bisbilhoteira, velha coruja!
 - Augusta… Eu não fiz nada disso!
 - Cala-te! – e deu-me um estalo. – Já te disse, se tu fazes alguma coisa, estás feita…
 No dia seguinte era sábado e como era hábito fui almoçar com o meu filho mais velho. Precisava de lhe contar, não podia guardar aquilo em mim. Comecei a contar, ainda que a gaguejar não sei se pelo nervosismo, ou por não encontrar as palavras certas, ou até mesmo de sentir as mãos de Augusta à volta do meu pescoço como se me estivesse ainda a esganar. O meu filho mostrou-se incapaz de fazer alguma coisa. ‘’Desculpe mãe, mas eu não posso ir falar com ela… Aliás, só me traria mais problemas.’’ Sugestionou que eu fosse à polícia fazer queixa ou então que deixasse andar porque ela haveria de parar.
Na segunda-feira seguinte, decidi prestar queixa à polícia pessoalmente. Mas caminhar na rua era um sufoco. Sentia-me perseguida ou no mínimo observada. O medo estava a tomar conta de mim e eu não o conseguia controlar minimamente. Fiz a minha queixa e a polícia foi fazer uma visita a Augusta. Circularam a casa num ápice, perguntaram o que havia acontecido para Alexandre estar pisado. Ela argumentou que o pirralho havia caído. Os polícias aceitaram e vieram embora.
 Naquele momento, senti-me inútil. Já sabia o que me iria acontecer. Nem precisei contar o tempo porque logo estava Augusta à porta de minha casa. Gritei que não abriria, de modo algum. Ela insultou-me de novo. Correu a casa e regressou. De machado na mão, Augusta começou a partir a minha porta. Eu afastava-me e gritava, enquanto ligava à polícia. Não consegui falar, mas gritei por socorro. Era tarde demais. Augusta já estava dentro da minha casa. Senti a mão gorda nela na minha cara. Perdi os sentidos, acho. Só me lembro de chorar e depois sorrir. Eu queria morrer a sorrir e então sorri. E fechei os olhos.
 Acordei meia tonta com a voz de um dos meus filhos a ecoar na minha cabeça. Sorri para ele e percebi que era o meu mais velho. Ouvi-o dizer ‘’Desculpa mãe por não ter ficado contigo’’. Ainda fraca, consegui ouvi-lo contar o que se havia passado: a polícia entrou imediatamente em minha casa após eu desmaiar e levou Augusta para um hospital psiquiátrico, depois de lhe ter sido diagnosticado algum trauma consequente da morte da mãe.
 Passaram-se alguns meses e eu fui viver para outro lugar, perto da casa do meu filho mais novo. Tudo estava bem agora: ali eu estava segura.
 O meu nome é Maria e já não vivo no mesmo lugar.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

; regresso





 Lauren ouviu baterem à porta. Rapidamente largou a sopa que estava a fazer para o seu jantar e foi ver quem era. O seu coração, literalmente, parou ao ver o seu marido. Os seus olhares cruzaram-se e ambos começaram a chorar. Ainda atordoada, Lauren resolveu ir chamar o filho. Durante esse compasso de espera, atrapalhadamente, agarrou no seu telemóvel e digitou o número que já sabia de cor. Sem mais demoras, escreveu em letras maiúsculas vivas: NÃO VENHAS HOJE JANTAR, O ROGER VOLTOU.
 Desde nova, Lauren havia-se apaixonado por Roger; praticamente era impossível separá-los. Já em crianças, Roger andava com a sua amada pela rua fora, de mãos dadas, e toda a gente achava uma gracinha, mesmo não sabendo que aquela relação seria, ao que dava-se a entender, para além do efémero. Certo é que a relação fora evoluindo: Roger e Lauren casaram, conceberam um filho e tinham tudo para ser o casal mais feliz.
 No entanto, o karma não parecia satisfeito. O tempo que Roger e Lauren haviam passado juntos, o destino fez questão de compensar. Roger tornara-se membro da marinha e viajava para lugares longínquos a combater o terrorismo em nome da pátria. Assim, Roger apenas regressava a casa de quando em quando e esse quando podia-se alongar até dois anos.
 É claro que não condeno e ninguém é digno de acusar, mas o certo é que Lauren, num dos dias em que passava a chorar, encontrou Michael e ambos começaram a ter um relacionamento, fazendo dele o seu amante.
 Agora, passado alguns anos e sem avisar, Roger havia regressado e encontrava-se agarrado ao filho que ele mal conhecera. Lauren disfarçou o facto de estar incomodada com a presença e perguntou ao seu marido se estava com fome.
 A lua começara a subir a uma velocidade incrível e a noite pós-estival ia-se adiantando com alguns clichés e sorrisos forçados e, quando Lauren percebeu que já não dava mais para continuar com aquela encenação, mandou o seu filho dormir.
 - Mãe? – sussurrou Tom, o seu filho que já tinha catorze anos. – O pai não sabe do Mike, pois não?
 Lauren acenou para Tom subir as escadas e o filho obedeceu. Por um segundo que foi equivalente a umas boas horas, as perguntas que Lauren receava mais suscitaram: ‘’Conto?’’ ‘’Não conto?’’ ‘’Se contar, o que vai acontecer ao Tom? ‘’ ‘’Se não contar, que raio de mulher sou eu?’’. Ainda com a cabeça cheia de interrogações, voltou-se para Roger e andou de mansinho. Sentou-se no seu colo e fez com que os seus braços fortes a agarrassem. Murmurou ao seu ouvido:
 - Quanto tempo vais ficar desta vez?
 - Só esta noite, depois volto. Fizeram-me uma proposta que não posso recusar. Não faças essa cara, é por uma boa causa. É para o futuro do Tom.
‘’Sim, e o nosso futuro?’’ pensou Lauren, mas teve medo do poder da sua pergunta e não teve coragem para a formular.
 Roger começou a beijar os lábios dela enquanto afastava os seus cabelos negros. Depois, pegou nela e foram, ainda um pouco destreinados, em direção ao seu quarto. Roger atirou Lauren para cima da cama e tentou compensá-la pelo tempo perdido.
Lauren pensava que sexo não era capaz de compensar o tempo em que fora vista, pelo bairro, como a casada cujo marido só a visitava de ano em ano, pelo tempo em que fora a jantares entre casais sozinha, pelos aniversários em que apenas festejava com o filho, pelas noites em que passara sozinha. Michael havia surgido na altura certa e estava presente, era capaz de a ajudar em tudo, ao contrário de Roger que apenas a visitava por um ou dois dias e só lhe conseguia dar sexo. Entre pensamentos e gemidos de satisfação por parte de Roger, Lauren acabou por adormecer.
 O relógio pousada na mesinha de cabeceira do lado onde Lauren dormia deu as seis horas. Roger limitou-se a sair da cama, beijar a testa da sua esposa e dirigir-se ao quarto de Tom. Contemplou as sombras que os objetos faziam quando eram inundados pelos ainda fracos raios da manhã. Depois olhou para o seu filho e verteu algumas lágrimas. Alisou o despenteado cabelo do filho, provavelmente fruto duma noite de muita agitação, e sussurrou em surdina: ‘’Isto é por ti, filho. Desculpa. ‘’. Por fim, vestiu-se e desceu as escadas. Contornou a torneira enquanto pensava no tempo perdido com Tom. Não havia sido um pai presente, não o havia levado à escola no primeiro dia, não o ajudara a estudar, não passara com ele inúmeros aniversários, não conhecia nenhuma das suas amigas nem sabia se o filho alguma vez namorara. Pela primeira vez, pensou em desistir de ir. Porém, essa dúvida desfez-se rapidamente ao pensar que teria de ter boas condições para criar o filho. Fez para si um pacto: aquela seria a última missão, a última vez que os abandonava.
 Queria contar a Lauren, mas não a queria acordar, visto que ambos odiavam despedidas. Portanto agarrou num papel e escreveu, com uma caligrafia um pouco apressada: ‘’Voltarei em breve e voltarei de vez. ‘’. Feito isto, Roger olhou uma última vez para a casa e foi-se embora.
 Passaram-se alguns meses e Lauren ainda aguardava notícias de Roger. Recebeu Michael em casa e chamou o filho para almoçarem. Tom ficara desapontado com a ida do pai. Já não tratava a mãe da mesma maneira dócil e culpava Michael por tudo. Tom não conseguia almoçar, apenas remexia os bocados de comida no seu prato.
 - Tom, filho, come senão a lasanha fica fria.
 Lauren fora interrompida para televisão: ‘’Mais de cem militares da nação morreram esta manhã nos confrontos contra o Leste. Prestemos uma homenagem aos militares cujos corpos foram encontrados mortos’’ e passou imagens de cada um dos soldados. Lauren deixou cair o copo que estava na sua mão e Tom ficou perplexo a olhar para a TV, assim como Michael. Roger havia morrido.
 Lauren ausentou-se da cozinha e Tom começara aos berros. Michael ainda tentara acalmar Tom, mas era impossível. Lauren não parava de chorar e agarrou numa fotografia do seu marido. Pensou para si como tinha sido egoísta ao ponto de não esperar por ele, por ter ficado com Michael e não ter contado a Roger. E agora Roger estava morto e não havia maneira de voltar atrás e desmanchar o passado.
Passado alguns dias, Lauren decidiu que acabar a sua relação com Michael seria o melhor. Mike não se opôs e compreendo a atitude tomada pela sua amada.
O Sol começou a tornar-se mais forte. Era primavera de novo. Lauren acordou e pôs uma flor no jarro que ficava na sua mesa-de-cabeceira. Fazia isto desde que Roger havia partido e já lá iam alguns meses. Naquela manhã, Tom chegou ao quarto da mãe. Com alguma vergonha, deitou-se no lado onde o seu pai dormia e abraçou Lauren.
 - Mãe? Acho que devias voltar para o Mike…
 - Que disparate filho! Tu até estavas chateado com ele! Porquê isso agora?
 - Porque ele sempre foi o pai que eu nunca tive, porque sempre foi o único homem que te dava amor. Ele amava-te e tu também o amavas. É estúpido, vocês não ficarem juntos.
 - Eu cometi um erro em andar com o Michael. Nunca deveria ter acontecido.
 - Eu não te culpo por traíres o pai, muito menos pela morte dele. Tu tentaste o impedir. Tu mereces ser feliz por todos estes anos. Mas pronto, conversas isto com o Mike. Ele deve estar a chegar para tomar o pequeno-almoço contigo, eu convidei-o por ti.
 - Tu quê?
 Tom retirou-se do quarto. Sabia que havia feito o correto. A mãe sempre fazia o melhor para ele e ele tentou fazer o melhor para a mãe.
 Quando Michael chegou, Lauren não sabia o que dizer e ele percebeu disso. Correu para ela e abraçou-a.
 - Desculpa por tudo, Mike!
 - Não sejas tonta, eu amo-te. Tu sabes disso.
 Lauren e Michael ficaram abraçados nas escadas, enquanto, do céu, o Sol iluminava as flores que Lauren punha em homenagem ao seu ex-marido.

quinta-feira, 1 de março de 2012

; crónica de quem vagueia pelas ruas da cidade



 Devo relembrar o leitor que vivo intimamente as emoções e que, ao longo destes assimétricos dias terrenos, tenho experimentado diversas. Relato agora algo que já devia ter feito, aliás, porque espalhar estas palavras faz bem a qualquer lunático como eu.
 Recordo esse dia com alguma nostalgia, das longas horas em que passava a repousar e a sentir sal da água do mar nos meus carnudos lábios, aguardando a hora em que o relógio ditava o fim da minha adolescência. Como já disse, recordo-a, à minha adolescência, com enorme saudade, pois era tão simples resolver os problemas nessa altura. Deparei-me com ela, a dita cuja que seria motivo do meu coração se acelerar gradualmente, durante uns tempos. Captei logo o seu olhar, visto que é a primeira característica que reparo em alguém. Dizem que os olhos mostram bastante sobre uma pessoa e eu concordo. Admito que os seus olhos não eram algo de se louvar aos céus. Eram normais, um castanho puro, porém com um brilho característico, que ainda não percebi porque sou o único que o vê. Fazia-se acompanhar de uns cabelos de ouro, relativamente perfeitos. Por momentos, regressei ao passado, onde havia estudado Camões. Comparei-a com a musa que o grande Poeta referia. Sim, se calhar era nela que ele se inspirava para escrever. Brincalhão como sou, resolvi tentar falar com A. (designar-lhe-ei por esta letra). Ela sorriu em troca.
 Faço agora uma elipse para não aborrecer o leitor.
 Viajamos juntos, anos depois, até Paris. Confesso que odiava a cidade em si, apreciava cidades diferentes, que não tivessem uma conotação mundial como Paris tinha. No entanto, o que um homem faz para agradar uma mulher! Devo salientar que apenas nos tínhamos tornado amigos, todavia eu já estava rendido aos seus encantos há bastante tempo.
 As luzes da noite parisiense incentivavam a um beijo que demorava a acontecer. Ela sorria para as fotografias que eu tirava com a minha Nikon. O seu sorriso, enfatizando, era simplesmente perfeito. A minha respiração aumentou, progressivamente. Olhei-a nos olhos e perdi o sorriso que sempre tinha. Fechei as pálpebras e aproximei-me. Não passava que ia retribuir, mas sim, os seus lábios envolveram-se nos meus. Voltamos para o hotel e mais um cavalheiro não conta.
 Acordei após o sol iniciar a sua Diáspora habitual e percebi que a sua radiação era intensa. Olhei para o lado, não porque não me lembrava de onde estava, mas sim para verificar se tudo tinha sido real. Sim, ela estava lá. Aproximei lentamente a minha cara sardenta da sua e notei o contraste da sua perfeição com a minha insanidade carnal. Pela primeira vez, pensei como teria ela se apaixonado por mim. Chamei o seu nome, quase em surdina, perto do seu ouvido. Ela sorriu, se calhar com a mesma sensação que eu tive quando acordei.
 Os dias que se passaram foram de um notável êxtase. Parecia que ambos vivíamos um sonho de adolescentes, embora já o tivéssemos deixado de ser há muito. Calculei que era, a partir de agora, odiado, pois era fácil ouvir os céus chorarem de terem perdido mais um anjo, desta vez para mim. O relógio continuava a andar, como sempre, marcando os anos que passámos juntos. Até que a determinada altura recebo um telefonema de A. Já alguns dias que andava estranha. Sem algum tipo de rodeios, A. dirigiu-se ao assunto que pretendia. Ouvi uma lágrima a cair no chão de mármore da sua casa. Recordo, perfeitamente, as palavras que escutei naquele dia. Por entre uma trémula voz, disse ‘’Para o nosso bem, é melhor acabarmos. Amo-te até ao fim. ‘’.
 É incrível como ainda não aguento lembrar isto sem derramar pelo menos uma dezena de lágrimas. Naquele momento, confesso ter sido um perfeito idiota e talvez por isso mereça tal castigo, por não ter lutado pelo amor de A.
 Dias depois, vim a saber que A. morrera de cancro e que tudo que havia feito fora para meu próprio bem. Senti-me inútil, mais do que isso, senti-me uma abominação, um ser nojento. É óbvio que não tive a coragem de ir ao seu funeral, no entanto, passo diversas vezes no cemitério e peço diversas vezes perdão. (bem sei que é estranho tudo que relatei, contudo tento fazer que o leitor entenda bem que mensagem quero passar, embora não a vá enunciar.) Passo, desde então, o dia a andar pelas ruas da cidade, chamando por seu nome, enquanto componho mentalmente estas palavras na esperança que, pelo menos, as gárgulas as ouçam.  Sem mais que fazer e, sem algum eufemismo, aguardo a morte. Enquanto isso, vagueio pelas ruas da cidade onde fui feliz com A.




terça-feira, 31 de janeiro de 2012

; fórmula resolvente


 Sustive a respiração. Contornei com os dedos alguns dos objectos do vazio que me envolvia. Voltei a suster a respiração. Prolonguei o meu braço e procurei pelo telemóvel. Eram cinco da manhã e eu não conseguia dormir. Olhei, então, para o tecto. Prolonguei de novo o braço e afaguei os lençóis ao meu lado. Não estavas. Senti o húmido das minhas frequentes companheiras nocturnas na almofada enquanto uma série delas voltavam a sair dos meus olhos. Como é que te fui perder?
 Tentei relacionar isso com alguma coisa que havia aprendido. Primeiro, pensei em rectas. Linhas rectas. Sim, se calhar era isso. Imaginei a tua e a minha e desprezei o resto existente. As nossas linhas que outrora se cruzaram e agora já não se podiam tocar mais. Isso, concorrentes. Pensei que até tive a felicidade de as nossas serem concorrentes e não paralelas, porque, pelo menos, já te tive. Pestanejei. Que coisa sem sentido estava na minha cabeça... 
Pensei: foi desta que perdi a racionalidade. Como posso comparar a tua beleza a duas linhas contínuas no espaço? Rebolei de novo no edredão. Relembrei um momento recentemente passado. Estava a caminhar, normalmente, pela rua que admito já ter percorrido umas centenas de vezes, até mesmo para te ver, até que ouvi a nossa música. Chorei.
 Formei ângulos rectos e comecei a chamar lentamente pelo seu nome. Tentei abrir os olhos e pensar que tudo não passara dum pesadelo, como os que eu tinha em criança e chamava pela mãe e ela me vinha ajudar. Depois sorri, ironicamente. Fui tão idiota a pensar que voltavas só chamando eu por ti.
 Não vou relatar como eu me sinto, não vale a pena.
 Percorri, vagarosamente, o resto dos lençóis que ainda guardavam o teu doce perfume. Mais uma hora passara e, não tão incrivelmente como esperado, continuava a pensar em ti. Reparei, entretanto, que a chuva caía lá fora. Perguntei a mim mesmo e, provavelmente, a alguém que me conseguisse ouvir: onde estás tu?
 Pensei em milhentas possibilidades das quais nenhuma enunciava que estavas junto a mim. Relembrei uma teoria que eu tinha que, constantemente, era mudada, assim como as leis da Física, quando descobrem um erro. A primeira tese que apresentei fora que uma existência sem ti era difícil. Reformulei passado algum tempo, afinal era fácil não te ter ao meu lado. Será? Foi por isso que arranjar outra argumentação: a existência sem ti não é existência, porque nada faz sentido.
 Sorri, novamente, com sarcasmo. Às vezes, era uma fácil maneira de evitar o choro. Contudo, foi inevitável; ele veio seguido do sorriso. E a chuva caía e tu não estavas aqui, nem sei se estarás e nem se algum dia voltarás.





quinta-feira, 10 de novembro de 2011

; até ao ultimo fôlego


 Atravessava-se naquela rotina traiçoeira, na primeira parte da manhã, ainda nem a aurora era alta no céu. Ela cobria-se com o seu lençol de cetim rosa e ele sentava-se no chão frio, mas que rapidamente tornava-se agradável, ali a ver a lua. Pegava nas cartas que ela lhe mandara e ele lhe respondera. Vi todos os ‘‘amo-te’’, todas as frases perfeitas que tentavam resumidamente explicar o que sentiam um pelo outro. Eu girava cento e oitenta graus e hei-lha: ouvia a sua respiração serena, sentia ainda o seu perfume por entre o lençol, contemplava os seus bem-desenhados lábios. Dava-me vontade de lhe roubar um beijo, mas teria o dia seguinte para lhe dar; preferia sacrificar-me e continuar a ver o amor da minha vida, ali, frágil, mas com um ar tão alegre.
 Era nestes momentos que sentia o meu coração vivo, suspirava umas dez vezes em cada pestanejar dos olhos.
 O sol quente raiava-lhe pela madrugada no seu rosto como água fresca. Ela sorria e dava graças por mais um dia de vida. Saia às vezes da cama e, ainda deitado no chão, acordava, olhava para ela e sorria como se lesse os pensamentos da sua cabeça. Ela agachava depositando todo o corpo de ser divinal na força das suas pernas. Eu sentia-me logo naquele instante o seu perfume natural, o que sentira de noite na sua cama. De seguinte, os seus lábios carnudos e onde mergulhava todo o fluido do seu sabor embargavam numa aventura nunca dantes praticada com os meus lábios. Eram incontáveis as vezes que já nos tínhamos beijado, mas era sempre uma aventura nova e única.
 E era naquele cenário, já casados há alguns anos que se encerrava a narrativa sobre o seu romance, amaram-se para sempre, isso asseguro. Até ao último fôlego dela, que fora a última a partir, ela amara-o sempre, cada dia mais que o anterior.
Posso garantir portanto, que viveram felizes para sempre.



segunda-feira, 1 de agosto de 2011

despedida

 Hoje passei na tua rua, na tua porta. Queria-te ver, por uma última vez, despedir-me sem chorar. Havia passado algum tempo. Para mim, foram horas, mas na realidade não tinha passado mais de cinco segundos. Olhei à volta, estava mesmo na esperança de te rever. Foi como se o céu tivesse caído todo em cima de mim. Tu realmente não ias aparecer, não me iria despedir. Voltei a passar, olhei à volta mais umas duas vezes. Como era possível? Tu não estavas lá.
 Parti, um misto de revolta com tristeza, uma saudade sem chama nem fonte onde se alimentar, uma amargura de que nunca mais te iria ver, era um facto, não havia forma de o mudar. Engoli em seco e parti. Espalhei as minhas lágrimas por todo o sítio em que estive, na esperança de lá passares e sentires o húmido da minha prece...
Rasguei as páginas do meu diário, todas falavam só de ti. Tive para comigo que nunca mais, mesmo, ia-te ver. Foi aí que aprendi a deixar de amar, nunca enfrentara algo tão tenebroso, juro.
 Soltei então todas as palavras no vento frio que soprava. Embora todo aquele esforço que eu ali estava a exercer para tentar apagar-te e deixar-te fluir no ar, eu não conseguia suportar a dor que tinha no meu coração. Recordava todas as promessas que havíamos feito, o sempre que queríamos construir, todas as vezes que os nossos lábios já haviam trocado segredos e que tinha sentido todo o perfume da tua pele.
 Fui corajoso, admiro-me como. Soltei os restantes pedaços de ti ao vento e ao mar.  Tentei sorrir e consegui: afinal não era assim tão difícil.

domingo, 10 de julho de 2011

, invisibilidade.






 Passava várias vezes despercebido, outras até que nem era visível, embora ele fosse alto e corpulento, o que era difícil de imaginar. Escondia-se usando aquele dom que descobrira ainda novo, no tempo em que a sua avó trazia-lhe o lanche e brincava às escondidas com o primo. A partir daí, aprendera rapidamente a utilizar esse seu poder.
 Apenas ouvia-se o seu choro e as suas lamurias a escorrer rosto abaixo, mas não se via. Ignoravam o som, porque sempre acreditavam apenas no que era visto e não no que invisível. Ele assim gostava, gostava de sofrer naquele espaço, invisível, sem que ninguém notasse que ele lá estava, que ele estava sempre naquele sítio. Deixava-se permanecer ali, esticado, sem que ninguém desse por ele, aguardar a sua hora de partir. Pessoalmente, nunca o vi, contudo sei que guardava na sua cara as marcas de uma história que não tinha um final nada feliz, talvez até incompleto, sem final. Embora no seu sorriso fosse notado aparentemente uma alegria contagiante, os seus olhos o condenavam dizendo que não era uma pessoa feliz.
 Até um dia… Porque tudo muda, sempre, um dia. Um dia, ele recordava-o assim, um dia cinzento, monótono, assim como a sua actual vida invisível. Começou a apoderar-se dele a necessidade de ser se mostrar, uma súbita ansiedade de ser quem nunca foi. Tinha aguardado muito tempo para desaparecer, mas tinha sido em vão. 
 Viu alegria nas coisas simples da vida. Apenas pelo acordar do Sol, já agradecia aos Céus por aquela dádiva. Apenas com um sorriso de uma criança, era o homem mais feliz de sempre.
 Porém, sempre que sentia saudades ou até tristeza, voltava a tornar-se invisível aos outros, até as lágrimas cessarem de cair e depois regressava à sua alegre vida com o habitual contagiante sorriso.
 E se o homem invisível fores tu? Afinal, os super poderes existem!