Peter era capaz de passar horas a compor mentalmente
composições musicais completamente melodiosas. Era completamente sensível a
sons e tudo que lhe fosse percetível a nível auditivo parecia completá-lo,
exatamente como o x na matemática.
Embora fosse um rapaz excecionalmente talentoso, Peter
passava agora na sua vida uma fase um bocado conturbada, devido à morte do seu
pai, durante um tiroteio com romenos, que tentavam assaltar a sua loja na baixa
portuense. O tiro cravou-lhe na aurícula direito e, por isso, dificilmente
resistiu, acabando por falecer no Hospital Santo António.
É de referir que Peter anteriormente a esta situação era
um rapaz gentil, tímido, mas curioso a nível cultural e tenho para mim que o
continuava a ser, visto que a sua máscara de rapaz frio caía em certos
momentos.
No entanto, vivia agora assim: evitava longas conversas
com a mãe, isolava-se no seu canto e apenas mostrava o que sentia quando
fazia soar as teclas do seu velho piano, já empoeirado. Até este hábito estava
a ficar perdido no meio de tantos decibéis silenciosos soltos no ar.
Peter estava completamente mudado. Já não era gentil e
educado nem só para a sua mãe bem como para as pessoas com quem convivia,
incluindo comigo, o mordomo da casa. Como referi, Peter adorava outras
culturas, mas passou a tomar atitudes completamente racistas, nomeadamente
insultava raparigas de cor negra que vivam perto da casa de praia dos seus
avós. Isto preocupava Alice, a sua mãe, mas nem mesmo ela conseguia controlar a
fúria e a raiva que ele sentia.
Alice achou por bem, no verão, viajar, mudar de ares e
consciencializar Peter de que algo se passava com ele. Para isso, escolheu visitar
a Índia. Fazia algum tempo que queria conhecer e juntou o útil ao agradável.
Deste modo, viajaram Alice e os seus dois filhos Peter e
a sua irmã Monique para aquele país sul Asiático.
Pauso agora e peço ao leitor que esqueça o cenário
aborrecido do habitual: esqueça aquele som irritante do telemóvel, o das
buzinas de carro, o das sirenes. Foque-se apenas nos sons cristalinos e na boa
energia que eles transmitem. Já está? Agora imagine as cores quentes e exóticas
de que está habituado a ver nos filmes sobre a Índia. Sim, é exatamente assim,
contudo mais vivo, mais puro.
A poeira do solo alaranjado que se levantava era inundada
por um mar sonoro que os envolvia. Peter desenvolvia dentro de si um ódio que
era alimentado não só pelo cheiro característico de Nova Deli, como também
pelos ‘’Diverte-te rapaz’’ que ouvia por parte da sua mãe. Peter tornara-se de
tal modo insensível que nem a música o animava. Além disto tudo, enojava-lhe
ver vacas, elefantes e ratos misturados com humanos. Peter queria voltar
rapidamente para casa, fumar e beber para esquecer.
Pelo facto de Monique estar bastante cansada, decidiram
alojar-se no hotel. Peter tomou um longo banho no chuveiro, onde tentou
organizar as ideias. A verdade era que não podia sair dali sem mais nem menos,
portanto restava-lhe divertir-se. Divertir-se? Pensou ele. Ele estava num país
distante, um mês após a morte do seu pai, tudo na sua vida estava
desorganizado: era o namoro da sua mãe com Joseph, era até a própria clave de
sol que já não fazia sentido na sua cabeça! A sua mente estava completamente um
caos. Ouviu de fundo a sua mãe chamar, iriam jantar fora e ela precisava ainda
de comprar algo que Peter não percebeu. Pediu também que tomasse conta de
Monique. Peter enxugou os seus cabelos loiros e sem camisola pegou na sua irmã
ao colo. Monique cantarolava levemente uma música provavelmente indiana com as
principais notas da escala pentatónica e Peter conseguiu ver da janela o cabelo
estupidamente untado de gel de Joseph. Como era possível a sua mãe ter trazido
Joseph às escondidas? Pior, como era possível aquelas mãos nojentas tocarem no
corpo que outrora fora de seu pai? Peter agarrou numa estatueta de Ganesha que
estava na mesa-de-cabeceira do quarto. Estrangulou aquela imitação em bronze da
deusa, expressando a raiva que sentia, raiva essa que foi cessada pelo cântico
quase angelical de sua irmã.
Ouviu Alice a subir as escadas, depois de dois longos
beijos. Peter afastou-se da janela, fingindo não saber de nada e preparou-se
para o jantar.
O salão era revestido de arcos brancos basálticos que
segregavam um forte cheiro a incenso. As paredes alvas como a neve estavam
cobertas de grinaldas de jasmim. Peter observou o redor tentando procurar no
meio de todos os indianos e turistas Joseph, mas dele não havia sinal. O jantar
iniciou-se e logo duas dançarinas indianas serviram Subji e Caril de caranguejo. A noite passava lentamente até
que um homem, também ele indiano, de barba contrastante com as paredes do
salão, subiu a um placo improvisado e anunciou, em inglês, uma dança de
boas-vindas das jovens de Nova Deli para os turistas.
Mal a música iniciou, Peter
reconheceu as notas diatónicas descombinadas da ‘’Ja Ho’’. Procurou pela última
vez por Joseph no salão e lá estava ele, a um canto, a observar as dançarinas,
mas como se fosse Alice que ele desejava no seu Harém. ‘’Porco’’, pensou. No
entanto, algo fez com que Peter parasse de pensar em Joseph, em Alice, em
Monique, no seu pai e até na música.
Primeiro, salientou-se a
silhueta de uma dançarina no meio das outras. Depois, a forma como ela se mexia
e por fim, quando observou o seu rosto, ficou sem reação. Peter ficou atónito
ao observar aqueles olhos completamente divinais da dançarina e os seus
movimentos de ancas petrificaram-no. Sentiu, por alguns longos momentos,
arrepios na sua epiderme. Os seus olhos fixos cruzaram-se com os dela e Peter
completamente congelou. Sentiu que todas as músicas que ele compusera haviam
sido feitas para ela tal e qual como se a força do seu destino, algures escrito
numa estrela, o levasse para ela. Era ela que a sua música procurava.
Naquele preciso momento,
todos os remorsos, raiva e indignação que Peter sentia dissiparam. Sentiu-se em
Varanasi, embora não acreditasse na misticidade desse local. Mas acreditava em
algo: o Universo os havia juntado naquele momento.
A dança finalizou e movido
por uma força suprema, Peter saiu do salão na tentativa de encontrar aquela
dançarina. E lá estava ela, a filha duma deusa indiana, grega ou até romana,
debaixo da Lua que iluminava toda a praça do hotel. Nunca havia visto corpo
mais vibrante e olhos mais profundos. A rapariga olhou para ele e sorriu
delicadamente. Ele retribuiu o sorriso. Ouviu-se umas gargalhadas entre as
amigas e começaram todas a correr.
- ESPERA! – gritou Peter
em inglês.
A rapariga continuou a
correr e Peter segui-a.
- Espera! – pediu Peter,
agarrando-lhe o braço.
- Não posso… - respondeu a
rapariga. – Tenho de ir.
- Diz apenas o teu nome e
onde te posso encontrar.
- Ahalya.
Amanhã, quando o sol estiver no ponto mais alto, em frente ao Taj Mahal. – E
fugiu.
O sol raiou no quarto isolado de Peter enquanto o nome ‘’Ahalya’’
ressoou nos seus lábios. O ar quente sul asiático fez com que Peter abrisse
lentamente os olhos e constatou que estava atrasado para encontrar Ahalya.
Apressou-se e correu para apanhar um Tuc-Tuc
até Agra. Embora vizinhas, as cidades de Agra e Nova Deli eram totalmente
opostas. Nova Deli era muito mais exótica, mas muito mais conturbadora, em
oposição a Agra, uma cidade calma e serena. E lá estava Ahalya. A sua bindi era de cor vermelha, tal como as
hematites da calçada agrariana e rapidamente fez-se condizer com o tom
avermelhado que o seu rosto tomou ao ver Peter. Ele não tinha a noção de como a
cumprimentar e simplesmente sentou-se ao pé dela e disse, em inglês, ‘’Olá’’. A
jovem respondeu-lhe com um vibrante ‘’Namaste’’ e sorriu-lhe. Seguiu-se uma
longa pausa, onde Peter hesitava em falar. Finalmente, tomou coragem e
explicou-lhe a sua teoria de que algo supremo a havia posto no seu caminho. A
jovem soltou uma gargalhada, agarrando-lhe na mão. Peter não entendeu o sinal,
mas involuntariamente entregou-se a ela. Ahalya levou-o, pelo meio de um lago.
Peter sentiu debaixo dos seus pés a argila molhada que lhe dava uma plena
sensação de liberdade. Liberdade… Era disso que ele precisava!
Ahalya conduziu, por fim, Peter a um jardim perfumado por
flores de lótus. Ela sorriu-lhe tal qual a personificação da deusa Lakshmi.
Olhou, pausadamente, os olhos de Peter e disse, lentamente:
- Eu senti o mesmo, não consigo descrever. Se me
contassem, eu ia pensar que não fazia sentido, que era uma estupidez. Mas agora
não… Eu sinto bem aqui. – agarrou as suas mãos e colocou-as no seu coração. – Brahma
juntou os nossos caminhos e tudo que Brahma faz é perfeito.
Peter sorriu-lhe, aproximando-se lentamente de Ahalya e deixando-se
levar pelo hipnotizando aroma doce de lótus. De seguida, as suas mãos
uniram-se, fortalecendo a comunhão entre aqueles dois seres e suscitou, por
fim, um prolongado beijo.
- Eu não acreditava em nada disto. Sempre acreditei na
razão e na plenitude das notas musicais. Para mim, tudo era muito linear.
Achava que estas coisas do destino não existiam. Mas agora tu… Tu surgiste no
pior momento da minha vida e estás a transformá-lo no melhor. É estranho dizer
já, mas sinto como se te conhecesse desde sempre e que pertenço a ti.
Ahalya sorriu-lhe: ela sentia o mesmo.