'' e a vida era mesmo assim: cair sete vezes & levantar oito. ''

terça-feira, 24 de junho de 2014

incompleto

 As manhãs eram piores que as tardes. Sentia a tua falta, sobretudo, misturada com um nojo de mim mesmo, um vazio que me provocava. Sentia-me um nada, um espetro projetado numa tela branca de cinema. Só, completamente só. E a luz que me formava esvanecia-se sobre o ar que distanciava o foco e a tela.
As manhãs tremiam incansavelmente, enchiam-se de água dos meus olhos. Sentia o seu sabor e a sua alcalinidade na minha boca e a paisagem mantinha-se igual, semelhantemente igual. Enchia-me também de oximoros entre a vontade de te ter e o desejo de não te querer. Dividia-me, fragmentava-me entre margens excêntricas do meu lado impulsivo e as linhas retas da minha razão. Desejava não te desejar tanto.
A maior parte das vezes ganhava a memória, a recordação do que foi apetecível. Pintava-te, moldava-te segundo uma atração fenomenal, uma dádiva divina. Alimentava-se de mim como uma bactéria mortal, consumia-me como fogo fátuo.
  Passava assim a manhã. Louco, alucinado, divido, fragmentado. Perdido.
  À tarde melhorava significativamente. A atração que te formava era substituída por pensamentos conscientes, isto quando não me tomava a ansiedade de te ver novamente, de, pelo menos, ouvir a tua voz. Residia agora em mim a patética esperança, a racionalidade despromovida de justificações. Perdia-me em conjeturas falsas, palavras sem noção do seu significado e deixava-me solto, incrivelmente livre de qualquer lei física que nos quisesse juntos. Não te querer, provavelmente, doía mais do que não te ter.
  Começava então uma súbita atrofia no meu corpo, moviam-me os músculos, especialmente o cardíaco. Entrava em mim, como por osmose, aquela vontade ensurdecedora que eu já conhecia. Tomava conta de mim, por completo, de cada célula, de cada biomolécula em mim integrada. Sentia desagregares de mim como por erosão do tempo ou da distância que nos separava. Mas voltavas a unir-te, por pontes de hidrogénio universais, cada vez que voltávamos a estar juntos.
 Redundância. E já era de noite. A noite sim matava-me por completo, tal como um veneno mortífero, uma doença silenciosa. Não sei porquê, mas perdia a razão e ligava completamente o interruptor do meu instinto animal. Nem pensava, só te queria, como na maior parte do dia. Mas ali mostrava. Ali sentia-me obrigado como se qualquer parte do meu corpo fosse comandada pela natura.
 Deixava-me levar e ser preenchido pelos grãos de areia da praia deserta. O luar focava o movimento lento e descendente do meu corpo. Profundo, ligeiramente profundo. Respirava ao ritmo das ondas. Evadia-me no espaço, mas continuava a ser noite. Continuava a haver luar, continuava a desejar-te com toda a minha alma, se é que ela existe. Sempre fui alguém material, concreto, racional. Contigo não. Contigo tudo era simples, fazias-me acredita na metafísica, no transcendente ao objetivo.
 Fizeste-me acreditar no espaço divergente, na realidade alternativa. No infinito.
 Sabia a sal na minha boca, mas não era do cloreto de sódio do mar. Sentia a cara molhada, mas não era do óxido de hidrogénio do oceano. Juntavam-se a ele as gotas que lacrimejava e eu continuava inerte, impuro. Lembro-me vagamente de um dor intensa nas pernas e nos ombros que se suavizava-me com a explosão de sentimentos que guardava. Olhei para o céu: vazio como eu, confuso como eu.

  Não vieste e não me surpreendo. Afinal não somos assim tão diferentes. Mas já passou. Ou vai passar.

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