(Esta crónica é baseada num relato que me contaram na primeira pessoa. Agradeço a quem ma contou. Os nomes são fictícios para não ferir ninguém. Espero que gostem e espero que reflictam para o combate à violência doméstica)
O meu nome é Maria e sempre vivi no mesmo lugar. Foi lá que,
sozinha, criei os meus três filhos. O meu marido havia morrido na Guerra do
Ultramar e desde aí tive de aprender a ser mãe e pai ao mesmo tempo. Admito que
não foi fácil aguentar às perguntas ‘’Onde está o pai?’’ ou ‘’O pai vem jantar?’’.
Tentava adiar o inevitável durante uns tempos e esse tempo foi passando por mim,
pelos meus e pelo lugar onde habito. Os meus filhos casaram todos, formaram famílias
e eu acabei por ficar aqui sozinha (obviamente com visitas frequentes dos meus
filhos). Comecei então a contar com a companhia e também com a ajuda da
vizinhança e, deste modo, fomos criando laços de amizade.
Até que num dia de verão, já a minha velhice floria na pele
e nos ossos, ouvi um choro vindo duma das casas que ficava no corredor por onde
tenho de passar. Fiquei alarmada e corri a me prontificar para o que fosse
preciso, visto que me haviam feito o mesmo sempre que necessitei. Palmira, uma
das vizinhas mais velhas, havia morrido. Era calculável que, mais tarde ou mais
cedo, a morte viria, contudo todos entravam em choque na hora em que ela
atuava.
A filha solteira, Augusta, ficou com a guarda dos netos que Palmira cuidava, visto que a sua filha Teresa havia falecido, e veio então morar para a casa da mãe. Foi aí que tudo
desmoronou.
Passei pela casa, como é minha rotina, e ouvi o choro dos
miúdos. Tentei espreitar. Como sempre, pensei que poderia ajudar, mas
deparei-me com Augusta na porta de casa.
- Não te metas onde não és chamada, velha gaiteira. – disse,
alisando com os seus gordos dedos as duas madeixas loiras.
Meia atrapalhada com a insolência de Augusta, fugi para casa
para preparar o almoço. Estava a preparar um bocado de bacalhau para o meu
filho mais novo que iria lá almoçar. O cheiro que se espalhara no ar foi
cortado quando ouvi, em alto som, uma chamada da casa de Augusta. Entre
insultos, que não vou proferir por não querer usar o vernáculo, ouvi o meu
nome. Dizia ela que me bateria e não tinha medo de quem viesse se eu me
voltasse a meter na vida dela. Pela primeira vez, temi. Encostei-me perto do
fogão e senti o meu coração a bater mais forte. As mãos começaram a dar sinal
de pânico e também o meu maxilar acompanhava o ritmo.
Os ânimos acalmaram quando o meu filho chegou. Finalmente,
Augusta estava completamente calada. Almoçamos naturalmente, mas sempre que o
silêncio se fazia, ouvia na minha mente as palavras de Augusta. ‘’Se for
preciso, eu mato-a! Ninguém me consegue parar!’’. O meu filho de nada
desconfiou e nem eu queria que ele soubesse. Sei que este meu filho é
completamente explosivo (algo que herdou do pai). Se ele soubesse desta situação,
partia para a violência.
Nos dias seguintes, passava a correr pela porta dela com
medo da sua reação. Comprei alguns pães para não ter de sair de casa nos
próximos dias. Ao passar pela porta de Augusta, olhei discretamente para lá e
vi pela janela Alexandre, um dos miúdos com a cara
pisada. Apressei-me a ir para casa na tentativa de que Augusta não me visse. Pensei
em avisar a polícia. Ainda hesitei, mas marquei o número no meu telemóvel.
De seguida, ouvi a madeira da minha porta a estalar com dois
batimentos singulares. ‘’Será que era a minha neta a fazer-me uma surpresa?’’-
pensei - ‘’Bolas… Logo hoje que não lhe fiz um bolo!’’ Abri na ilusão de ser
ela, mas não. Augusta apresentou-se à minha frente.
- O que é que ias fazer?
- Eu… Eu… Eu… Nada. – gaguejei.
Augusta apontou para o telemóvel.
- O que ias fazer com o telefone? Eu sei… Ias ligar à
polícia!
Augusta tomou iniciativa e foi entrando pelo meu hall. Peguei no telemóvel e escondi-o
atrás de mim. Augusta tomou as mãos e elevou ao meu pescoço e empurrou-me
contra a parede. Encostou a sua testa à minha.
- Se tu fazes alguma coisa, eu mato-te… Ouviste?
- Augusta… Filha… Senta-te e explica-me que mal eu te fiz. –
implorei a chorar.
- Cala-te! A culpa da minha mãe morrer é tua! Nem lhe deste
atenção… E ainda por cima és bisbilhoteira, velha coruja!
- Augusta… Eu não fiz nada disso!
- Cala-te! – e deu-me um estalo. – Já te disse, se tu fazes
alguma coisa, estás feita…
No dia seguinte era sábado e como era hábito fui almoçar com
o meu filho mais velho. Precisava de lhe contar, não podia guardar aquilo em
mim. Comecei a contar, ainda que a gaguejar não sei se pelo nervosismo, ou por
não encontrar as palavras certas, ou até mesmo de sentir as mãos de Augusta à
volta do meu pescoço como se me estivesse ainda a esganar. O meu filho
mostrou-se incapaz de fazer alguma coisa. ‘’Desculpe mãe, mas eu não posso ir
falar com ela… Aliás, só me traria mais problemas.’’ Sugestionou que eu fosse à
polícia fazer queixa ou então que deixasse andar porque ela haveria de parar.
Na segunda-feira seguinte, decidi prestar queixa à
polícia pessoalmente. Mas caminhar na rua era um sufoco. Sentia-me perseguida
ou no mínimo observada. O medo estava a tomar conta de mim e eu não o conseguia
controlar minimamente. Fiz a minha queixa e a polícia foi fazer uma visita a Augusta.
Circularam a casa num ápice, perguntaram o que havia acontecido para Alexandre
estar pisado. Ela argumentou que o pirralho havia caído. Os polícias aceitaram
e vieram embora.
Naquele momento, senti-me inútil. Já sabia o que me iria
acontecer. Nem precisei contar o tempo porque logo estava Augusta à porta de
minha casa. Gritei que não abriria, de modo algum. Ela insultou-me de novo.
Correu a casa e regressou. De machado na mão, Augusta começou a partir a minha
porta. Eu afastava-me e gritava, enquanto ligava à polícia. Não consegui falar,
mas gritei por socorro. Era tarde demais. Augusta já estava dentro da minha casa.
Senti a mão gorda nela na minha cara. Perdi os sentidos, acho. Só me lembro de
chorar e depois sorrir. Eu queria morrer a sorrir e então sorri. E fechei os
olhos.
Acordei meia tonta com a voz de um dos meus filhos a ecoar
na minha cabeça. Sorri para ele e percebi que era o meu mais velho. Ouvi-o
dizer ‘’Desculpa mãe por não ter ficado contigo’’. Ainda fraca, consegui
ouvi-lo contar o que se havia passado: a polícia entrou imediatamente em minha
casa após eu desmaiar e levou Augusta para um hospital psiquiátrico, depois de lhe ter sido diagnosticado algum trauma consequente da morte da mãe.
Passaram-se alguns meses e eu fui viver para outro lugar,
perto da casa do meu filho mais novo. Tudo estava bem agora: ali eu estava
segura.
O meu nome é Maria e já não vivo no mesmo lugar.

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